— O sentimento de inferioridade afecta toda a nossa vida e, em particular, o pensamento. Sabia? Por sermos inseguros, inventamos um sistema muito estável e rígido para nos manter na vertical. Um sistema que nos simplifica as complexidades que nos parecem desnecessárias. E a maior simplificação é pensar as coisas em termos de preto-branco, em pensar baseado em antíteses simples. Compreende o que estou a falar? A mente estabelece um conjunto de contrários distintos: preto-branco, dia-noite, cima-baixo, mulher-homem, e eles determinam toda a nossa percepção. Não existe nada no meio. O mundo visto assim é muitíssimo mais simples; é fácil navegar entre esses pólos, é fácil estabelecer regras de conduta e é especialmente fácil julgar os outros, reservando amiúde para si o luxo da ambiguidade. Este tipo de pensamento protege-nos de toda e qualquer incerteza, zás-trás-pás, e tudo se torna claro, assim ou assado, não há uma terceira via. Aristóteles — o bezerro de outro. — Aqui, o médico riu-se tão alegremente que Wojnicz quase se juntou a ele. — Isto protege-nos da realidade feita a partir da multiplicidade de nuances muito subtis. Se alguém pensar que o mundo é um conjunto de extremos opostos, é porque está doente. Sei do que falo. É uma disfunção poderosa.
— E como é o mundo?
— Desfocado e pouco nítido, tremeluz umas vezes assim, outras vezes assado, dependendo do ponto de vista.

Olga Tokarczuk, Empúsio

Oscilando perigosamente

— Cada um de nós é um potencial louco, meu jovem. A norma é uma fantasia. Todos nós nos encontramos numa fronteira com um pé no nosso próprio mundo interior e outro no mundo exterior, oscilando perigosamente. É uma posição desconfortável e poucos conseguem manter o equilíbrio.

Olga Tokarczuk, Empúsio

A literatura — como eu a entendo — está próxima do mito na medida em que descreve coisas que não aconteceram, mas estão sempre a acontecer. E, no entanto, diz a verdade sobre a vida do homem e, sobretudo, abre-o a outro homem. É um diálogo constante que a nossa espécie trava consigo mesma e ajuda a libertar-se da prisão da sua própria singularidade, do seu individualismo. Repito sempre que a literatura é um tipo sofisticado de comunicação interpessoal.

Olga Tokarczuk, Público, 04-10-2022

Os benefícios daquilo que é inútil

Mas porque razão devemos ser úteis, e em relação a quê? Quem dividiu o mundo em útil e inútil, e com que direito? Será que o cardo não tem direito à vida? Ou o Rato que come o grão de trigo dos celeiros, as Abelhas e os Zangões, as ervas daninhas e as rosas? Terá sido a razão que teve o descaramento de julgar quem é melhor e quem é pior? A árvore grande, retorcida e esburacada, que persistiu ao longo dos séculos, não foi abatida porque dela não seria possível fabricar nada de jeito. Este exemplo devia animar as pessoas como nós. Todos conhecem os proveitos daquilo que é útil, mas ninguém conhece os benefícios daquilo que é inútil.

Olga Tokarczuk,Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos

Ouvir e não dizer nada

Ao ouvir a história da vida da Boa Nova, comecei a formular mentalmente todas aquelas perguntas que começam por «e porque não…», e às quais se segue a descrição daquilo que ― em nosso entender  ―  se devia fazer em situações como aquela. Já os meus lábios começavam a tomar posição para articular um desses impertinentes «e porque não», quando mordi a língua.

É precisamente isto que fazem as revistas a cores, e eu queria por instantes imitar uma delas: dizem-nos o que não fizemos, onde falhámos, o que negligenciámos, e, por fim, amarguram-nos a ponto de nos desprezarmos a nós próprios.

Eu não disse nada. Histórias de vida não são tema para discussão. Devemos ouvi-las com atenção e retribuir da mesma maneira. Foi por isso que, em tempos, contei à Boa Nova a história da minha vida, e a convidei para minha casa a fim de conhecer as minhas Meninas. E assim aconteceu.

Olga Tokarczuk, Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos