— O sentimento de inferioridade afecta toda a nossa vida e, em particular, o pensamento. Sabia? Por sermos inseguros, inventamos um sistema muito estável e rígido para nos manter na vertical. Um sistema que nos simplifica as complexidades que nos parecem desnecessárias. E a maior simplificação é pensar as coisas em termos de preto-branco, em pensar baseado em antíteses simples. Compreende o que estou a falar? A mente estabelece um conjunto de contrários distintos: preto-branco, dia-noite, cima-baixo, mulher-homem, e eles determinam toda a nossa percepção. Não existe nada no meio. O mundo visto assim é muitíssimo mais simples; é fácil navegar entre esses pólos, é fácil estabelecer regras de conduta e é especialmente fácil julgar os outros, reservando amiúde para si o luxo da ambiguidade. Este tipo de pensamento protege-nos de toda e qualquer incerteza, zás-trás-pás, e tudo se torna claro, assim ou assado, não há uma terceira via. Aristóteles — o bezerro de outro. — Aqui, o médico riu-se tão alegremente que Wojnicz quase se juntou a ele. — Isto protege-nos da realidade feita a partir da multiplicidade de nuances muito subtis. Se alguém pensar que o mundo é um conjunto de extremos opostos, é porque está doente. Sei do que falo. É uma disfunção poderosa.
— E como é o mundo?
— Desfocado e pouco nítido, tremeluz umas vezes assim, outras vezes assado, dependendo do ponto de vista.

Olga Tokarczuk, Empúsio

Oscilando perigosamente

— Cada um de nós é um potencial louco, meu jovem. A norma é uma fantasia. Todos nós nos encontramos numa fronteira com um pé no nosso próprio mundo interior e outro no mundo exterior, oscilando perigosamente. É uma posição desconfortável e poucos conseguem manter o equilíbrio.

Olga Tokarczuk, Empúsio

Quando bem feita, toda a concentração aumenta a intensidade da força e diminui o espaço ocupado. Estamos em menos espaço, mas com mais poder. Como se existissem dois movimentos inversos com sincronização perfeita: cada palavra eliminada aumenta a força das palavras que ficam. Eis a possível definição de haiku.
Trata-se também de uma questão de luz. Se supusermos que há uma luz única, de quantidade fixa, falemos assim, que incide sobre um texto — e há mesmo: a luz natural, a luz da lâmpada —, poderemos então pensar que, num número reduzido de palavras, cada palavra recebe mais quantidade de luz; é mais iluminada. E se estivermos atentos aos vários sentidos da expressão «estar iluminado», poderemos pensar em palavras (focos de luz) que nos indicam o caminho quando, no meio da nossa vida, perdidos na floresta, nos encontramos. Em plena escuridão, um pequeno ponto de luz deixa de ser uma questão material, explicável pela física, e passa a ser uma questão metafísica e existencial; ela não apenas me permite ver: salva-me.

Gonçalo M. Tavares, Tempestade e Motor. 100 Haikus.

Mais vivas e reais

Agora via que as figuras da estatueta dupla que aludia a mim e a Leo se tornavam não só mais nítidas e mais semelhantes, mas também via que a sua superfície era transparente e que se podia olhar para o interior, tal como se olha através do vidro de uma garrafa ou de um vaso. E no interior das figuras vi algo mexer-se devagar, infinitamente devagar, como uma serpente adormecida. Qualquer coisa estava a acontecer ali, algo como um escorrer ou derreter muito lento, suave, mas ininterrupto. Ou mais precisamente, algo derretia ou escorria da minha imagem para a de Leo, e eu percebi que a minha imagem estava precisamente a entregar-se e a desfazer-se, escorrendo cada vez mais para a de Leo, para o alimentar e fortalecer. Parecia que com o tempo toda a substância de uma imagem iria escorrer para a outra e uma única permaneceria: Leo. Ele tinha de crescer, eu tinha de diminuir.
Enquanto lá estava e olhava, tentando compreender o que via, veio-me novamente à memória uma pequena conversa que tivera outrora com Leo nos dias festivos de Bremgarten. Tínhamos falado do facto de as figuras de criação poética serem geralmente mais vivas e reais do que a figura dos seus poetas.
As velas arderam até ao fim e extinguiram-se. Senti-me invadido por um infinito cansaço e, voltando-me, parti para encontrar um lugar onde me pudesse deitar e dormir.

Hermann Hesse, Viagem ao País da Manhã

No meio do desespero

A sua prova levou-o ao desespero, e o desespero é o resultado de toda a tentativa séria de compreender e justificar a existência humana. O desespero é o resultado de toda a tentativa séria de percorrer o caminho da vida com a virtude, com a justiça, com a razão e de cumprir as suas exigências. Aquém deste desespero vivem as crianças, além dele, os iluminados. O acusado H. já não é criança e ainda não está totalmente iluminado. Ainda está no meio do desespero.

Hermann Hesse, Viagem ao País da Manhã